ADMIRÁVEL MUNDO NOVO(Aldous Huxley)
Em Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley cria uma utopia aparentemente impossível, mas que mantém profundas relações com a história do homem. Especialmente com o momento em que o livro foi escrito. Mas antes de quaisquer considerações façamos um pequeno estudo das personagens.
Bernard Marx é a prova viva de que o sistema é falho. O álcool colocado em seu sangue artificial produziu uma variação indesejada: um homem de casta superior com características de casta inferior que recusa-se a usar soma e é capaz de criticar a sociedade em que vive e interessar-se por outras formas de organização social. Bernard é um homem profundamente dividido entre o programa e a necessidade de livrar-se dele, por isso às vezes acaba tomando soma. A semelhança entre Bernard Marx e Karl Marx é apenas nominal.
Através do selvagem Bernard conseguiu livrar-se da ameaça de transferência para Islândia e tornar-se um homem desejado pelas mulheres. O diferente usa o diferente para parecer igual. Porém, logo a arrogância de Bernard começou a atrair o ódio dos seus iguais (em razão de parecer diferente). Como nem mesmo o programa social é capaz de eliminar os piores sentimentos humanos, ficamos com a nítida impressão de que o behaviorismo é ineficiente. Esta idéia é "reforçada" através da reação das personagens quando o selvagem recusa-se a apresentar-se na festa (humilham Bernard e deixam claro que pretendem vingar o ultraje).
O Diretor de Incubação e Condicionamento (D.I.C.) é um homem ortodoxo. Para ele nada é mais importante que a manutenção do programa. Por isso resolve transferir Bernard Marx para a Islândia quando descobre que há algo diferente em seu comportamento. Entretanto, o próprio D.I.C. também teve seu momento de fraqueza. Exatamente como Bernard interessou-se pela vida na reserva, que visitou em companhia de Linda. Abandonou sua acompanhante à própria sorte entre os selvagens, onde ela acabou dando a luz ao seu filho:- John. A sugestão óbvia é de que a conduta de Bernard segue, portanto, um padrão idêntico ao do Diretor.
Linda era uma jovem exatamente igual às outras de sua casta. Depois que foi deixada na reserva tornou-se mãe, envelheceu e ficou gorda. Uma mulher horrível, totalmente diferente das mulheres da civilização. Seus hábitos sexuais acabam lhe valendo problemas na tribo, onde a monogamia era praticada. Na ausência de soma toma Peytl e Mescalina, drogas produzidas pelos indígenas do Novo México que se tornaram populares durante a década de 60 entre os jovens americanos. A história de Linda mantém relações evidentes com o mito da queda. Ela estava no paraíso (civilização) e acabou sendo lançada no mundo (reserva). Em seu novo lar experimenta a privação, o sofrimento e a velhice. Sofre em razão de suas atribulações e da lembrança da vida que tinha outrora.
John foi criado entre os selvagens, mas não como um deles. Segregado pelos demais garotos, teve uma infância difícil. Jonh odiava os amantes de sua mãe, especialmente Popé, a quem tentou matar. Por issso, podemos concluir que o garoto sofre de complexo de Édipo. O ritual de passagem para a vida adulta foi lhe negado. Sua educação foi feita com base nas peças de Shakespeare, dramaturgo inglês que encarava o sexo com o pudor natural de sua época. Entretanto, como este tipo de conhecimento não é valorizado nem na reserva nem na civilização, segue-se que John passa a ser mais discriminado em razão dele. Chega ao Admirável Mundo Novo virgem e recusa-se a copular com Lenina, a quem acusa de prostituta. Como não consegue adaptar-se entre os civilizados, foge e acaba se tornando uma espécie de atração turística.
O selvagem faz constantes referências às peças de Shakespeare. O que para nós seria índice de refinamento e civilidade é uma constante fonte de problemas para John. A inversão feita pelo autor causa um certo desconforto no leitor em razão do seu elevado valor simbólico. Shakespeare é considerado o maior dramaturgo ocidental e sua desvalorização não poderia passar desapercebida. Se a intenção do autor é fazer o leitor refletir sobre as relações entre civilização e barbárie a referência ao dramaturgo é adequada. Afinal a matéria prima das peças de Shakespeare são justamente os piores sentimentos humanos (cobiça, inveja, ciúmes, vingança, etc).
Há uma certa semelhança entre John e Bernard, afinal ambos são segregados e sofrem as conseqüências em razão de serem diferentes. O selvagem morrendo e Bernard sendo enviado para uma ilha.
A mais importante personagem feminina chama-se Lenina. Aqui a referência é a Lenin, ideólogo da revolução bolchevique e governante da russia de 1917 a 1923.O responsável pela reprodução em série chama-se Henry Foster. Ele tem, portanto, um nome muito parecido com o inventor da linha de montagem (Henry Ford).
Benito Hoover é um homem atento à tudo que acontece à Bernand. Vigia-o como se fosse um investigador ou um ditador. O nome da personagem mantém relações claras com seu caráter:- Benito Hoover é a união dos nomes do ditador italiano dos anos 30 e do Diretor do FBI americano por quase três décadas (Benito Mussolini e J. Edgard Hoover).
Helmholtz Watson, o amigo de Bernard Marx, leva a alcunha de um dois pais do behaviorismo. Sofre de um excesso mental em razão do qual também pode ser considerado como uma falha no programa. Helmholtz entrega-se à poesia lírica e é condenado ao isolamento numa ilha. Suporta com estoicismo a condenação e escolhe ser mandado para as Ilhas Falklands. O banimento de Helmholtz lembra o de outro poeta.. Após a Revolução de 1917 Puchkim, que foi o maior poeta romântico russo, foi banido da Russia. Apesar de sua importância para a literatura russa, suas obras foram proibidas e ele caiu no esquecimento até ser reabilitado durante a Perestroika de Gorbachev nos anos 80.
É evidente a semelhança entre a descrição de Mustafá Mond e Adolf Hitler. Ambos tinham estatura média, cabelos pretos, nariz curvo, lábios vermelhos e carnudos e olhos muito escuros e penetrantes. Note-se que o D.I.C. salda-o com a mão estendida. Qualquer semelhança entre esta saudação e a saudação nazista é mera semelhança (intencional). Não podemos nos esquecer que o Fürer chegou ao poder na Alemanha em 1930, portanto, dois anos antes da publicação do livro. Mustafá Mond justifica a organização da sociedade em castas no fato dos trabalhadores gostarem de suas tarefas mesmo que elas sejam odiosas. Este argumento é absolutamente inválido, afinal os membros das classes inferiores foram condicionados a gostar de seus trabalhos. Em razão imobilidade social não tiveram e não terão a oportunidade de provar algo diferente.
Joana Diesel é a um só tempo a heroina francesa (Joana D'Arc) e o combustível que move a América (diesel). Morgana Rothschild leva o nome da irmã do Rei Arthur e mãe de Mordred (Morgana) e o nome de uma das mais tradicionais famílias de magnatas americanos (Rothschild). Herbert Bakunin é o resultado da estranha união entre o sociólogo inglês (Herbert Spencer) com o anarquista russo (Bakunin). Sarojoni Engles leva o nome do parceiro de Karl Marx e Polly Trotsky o do lider russo que ajudou a organizar o Exército Vermelho e foi banido da URSS por Stalim. O jornalista Darwim Bonaparte leva o nome do pai da teoria da evolução das espécies (Charles Darwim) e do corso que tornou-se imperador francês após o Regime do Terror (Napoleão Bonaparte)
A narrativa é linear com predomínio da sinestesia. A linguagem é acessível, apesar dos neologismos inventados pelo autor para descrever sua utopia futurista. Apesar da linearidade da narrativa, no capítulo 3 o leitor é obrigado a reconstruir a unidade dos diálogos fragmentados, intercalados. A destruição da organização linear do discurso é sem dúvida alguma uma proposta moderna que se harmoniza perfeitamente à proposta do livro de chocar o leitor.
Também é moderno o tratamento dado pelo autor ao tempo. A princípio, vale notar que o tempo interno da narrativa é de algumas semanas, poucas (cap. 18). No capítulo 8 temos um longo flash-back em que o narrador se ocupa da infância de John. Nele, o tempo é cronológico, mas apresenta uma segmentação que lembra um fluxo de consciência (como se a própria personagem estivesse narrando sua história). No capítulo 13 o autor interrompe a narrativa para explicar o que aconteceu vinte e dois anos depois ao indivíduo que ficou sem a vacina que deveria ser e não foi aplicada por Lenina ao feto. Esta é a maneira que o autor encontra para fornecer uma uma pista do que poderia ter acontecido a Bernard.
Huxley abusa da ironia. No capítulo 5 é narrado o encontro entre um casal absolutamente incrível:- Lenina e Henry Foster. A sugestão é de que entre o regime socialista concebido por Lenin e o sistema de produção capitalista criado por Henry Ford não há diferença qualitativa. Ambos são perfeitos para explorar a força de trabalho das classes subalternas, por isso podem tornar-se parceiros e manter relações amistosas. Não foi a toa, portanto, que foi possível a união entre EUA e URSS na II Guerra Mundial. O jogo irônico com os nomes não para aí. No capítulo 6 o narrador afirma que "...estranho era o juízo de Lenina sobre Bernard Marx." Lenin se pretendia um fiel interprete de Karl Marx e nunca materia um juízo estranho sobre o mestre. No capítulo 2 é feita uma breve referência a Kant ("...sibilava com o imperativo categórico"). Em sua "Crítica da Razão Pura", Immanuel Kant defendeu a existência de categorias cognoscitivas inatas. Sua teoria vai de encontro ao behaviorismo, que postula que tudo é aprendido. Há, portanto, uma ironia muito refinada na citação. Logo depois, o narrador refere-se à Consciência de Classe. E aí temos uma nova espetada na URSS, que procurou condicionar seus trabalhadores a se esforçarem o máximo com o mínimo de retorno exatamente em nome da consciência de classe.
A primeira coisa que chama atenção no livro é a maneira como o tempo é contado no livro. A era cristã já findou. Os anos são contados a partir de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas a partir do nascimento de Nosso Ford. A alusão é clara a Henry Ford, o criador da linha de montagem, do processo industrial que revolucionou o capitalismo no início deste século XX. É natural que numa sociedade massificada em que as pessoas são produzidas em série (inclusive com as mesmas características genéticas), Cristo tenha perdido sua importância e Ford seja reconhecido como se fosse um deus.
A divisão de óvulos para produção de 96 seres humanos onde antes nascia apenas um é chamado de Processo Bokanovsky. O nome do processo é sem dúvida alguma russo. Daí a crítica sutil à URSS, que a partir da revolução usou o sistema educacional para construir sociedade baseada no novo homem, desprovido de individualidade e devotado à causa socialista.
O Admirável Mundo Novo é uma sociedade de castas. Em sociedades similares não há mobilidade social, inexistindo conflito entre as classes sociais (pelo menos teoricamente). Até bem pouco tempo a Índia era uma sociedade organizada desta maneira e até mesmo a religião justificava a imobilidade social. Sociedades assim tendem a seduzir muito homens que acreditam que a ordem está acima de tudo. Até mesmo Platão sentiu-se tentado pela idéia, organizando sua República ideal em castas:- rei filósofo, comerciantes, artesãos, soldados e agricultores.
Os trabalhadores são condicionados desde logo às vicissitudes que enfrentarão ao longo de suas existências. Assim, se acostumarão à elas como se fossem naturais e não desejarão melhorias nas condições de trabalho. Não há diferença entre o condicionamento dos operários e o ideal capitalista de trabalhadores satisfeitos, mesmo diante das piores condições de trabalho.
Nas Salas de Condicionamento Neopavloviano, os bebes das classes inferiores são condicionados a não gostar de livros. Pavlov, cientista russo que estudou o reflexo condicionado fazendo experiências com cães, serve de inspiração para Huxley conceber o mais eficiente sistema educacional já existente. Quase tão eficiente quanto o brasileiro na atualidade. Alguém já se perguntou porque não são tomadas medidas para reverter o quadro atual da Escola no Brasil? Porque ela tem que desenvolver nos alunos uma verdadeira repulsa pelo conhecimento?
Huxley leva ao extremo as experiências feitas com crianças pelos primeiros behavioristas. Seu intuito óbvio é questionar profundamente esta teoria psicológica que estava na moda no início do século. Note-se que desde logo é admitida a hipótese de descondicionamento através do acesso ao conhecimento. Ora, se o conhecimento é capaz de modificar o programa, segue-se que o behaviorismo é uma teoria falha.
A sociedade futurista do livro é sustentada pelo soma e pelos jogos. A semelhança entre a utopia de Huxley e Roma Imperial é notável. Afim de conter a plebe, os patrícios e os imperadores romanos faziam o que era necessário para manter o abastecimento de pão e vinho na cidade. O vinho não é tão inofensivo quanto o soma, mas também é capaz de embriagar. Os jogos realizados regularmente no circo romano visavam divertir e desviar a atenção da plebe dos problemas do cotidiano, justamente como os esportes praticados no Admirável Mundo Novo.
O soma é consumido em três situações:- pelos operários após o trabalho, pelos membros da classe dominante a qualquer momento e em rituais coletivos. No Egito os escravos recebiam regularmente bebida alcoólica após os dias fatigantes de trabalhos forçados. O soma é racionado para os indivíduos das castas superiores. Os membros das classes superiores tem uma ração ilimitada da droga. Se considerarmos o soma=felicidade, vemos quanto o futuro se parece com a atualidade. Afinal, a felicidade tem um preço, mas nem todos podem comprá-la o tempo todo.
Não há novidade na utopia do escritor americano. Na verdade ele descreve um Admirável Mundo Velho. Um velho mundo capaz de renovar-se constantemente. Nesse particular, a única inovação de Huxley é conceber a diversão como um negócio muito rentável. Mas nem mesmo nesse ponto o autor distanciou-se da realidade tangível. Afinal, nos dias de hoje o entretenimento é uma das maiores cadeias econômicas no planeta.
Note-se, ademais, que desde o final do século passado as classes dominantes européias conheciam o ópio e a cocaína, drogas que foram largamente utilizadas por artistas. O soma utilizado pelas personagens é uma espécie de droga, com a diferença de que não produz efeitos colaterais. Por isso é a substância perfeita para preservar a felicidade alienada dos habitantes do Admirável Mundo Novo. Mas nem aqui há novidade, na mitologia védica milhares de anos antes de Cristo já vemos o culto ao deus Soma e a utilização de uma substância capaz de dissolver todas as angustias humanas (o soma). Este é um caso de perfeita identificação entre a utopia futurista e uma das mitologias mais antigas da raça humana.
Os jogos eróticos entre os jovens são incentivados no Admirável Mundo Novo. Também o foram na Alemanha nazista. Quando chegou ao poder, o Partido Nazista deflagrou seu plano de recomposição da população alemã, que havia sido muito degradada pela I Guerra Mundial. O Reich precisava de operários para as fábricas e de soldados para o exército e competia à juventude alemão repovoar a Alemanha.
Na sociedade concebida por Huxley vários livros são proibidos. Só dirigentes como Mustafá Mond tem o direito de violar as regras, tendo acesso aos livros banidos. Também aqui não há qualquer novidade. Durante toda Idade Média a Igreja manteve deu Index Librorum Proibitorum, banindo diversos livros e queimando seus autores (como Giordano Bruno, por exemplo). Apesar disso os membros do clero podiam estudar as obras proibidas. Entretanto, se vermos filmes de propaganda nazista da década de 30 descobriremos onde Huxley baseou-se para escrever seu livro. Os nazistas recolhiam e queimavam livros considerados proibidos para a glória do Reich. De qualquer maneira deve-se ressaltar que a existência de censura é uma prova de que o programa social é ineficiente, de que o conhecimento é capaz de descondicionar (libertar) os indivíduos. Nesse particular o livro não critica somente o totalitarismo como também a utilização que ele faz do behaviorismo já que o controle social sempre ineficiente.
No capítulo 16 há uma referência a um livro com o nome "MINHA VIDA E OBRA, POR NOSSO FORD". A referência é clara ao livro "Mein Kampf" escrito por Adolf Hitler e que se tornou uma espécie de bíblia na Alemanha nazista.
Os fundamentos da liberdade de consciência (arte e a ciência) foram suprimidos na civilização futurista de Huxley. Tudo está submetido à necessidade de manter a ordem "natural" das coisas. A imobilidade social é um valor fundamental que merece o sacrifício do espírito humano. Tendemos a ficar impressionados diante da utopia construída por Huxley. Mas o que é mais aterrador é que ela não é nova. Na Idade Média a Igreja submetia a arte e a ciência aos seus próprios interesses. Os cientistas e artistas que não atacassem os fundamentos da fé e da ordem feudal eram subvencionados, os dissidentes queimados. Não foi à toa que o feudalismo durou 13 séculos na Europa.
No Admirável Mundo Novo a família foi banida. A crítica que é feita à esta instituição é perfeitamente plausível. À época em que o livro foi escrito Sigmund Freud já observara quantos problemas a família monogâmica cristã trazia para o desenvolvimento psicológico de seus pacientes denunciando-o na sua obra "O mal estar da civilização".
Nenhum dos preconceitos científicos da época foi deixado de lado no livro. Nem mesmo as teorias racistas, que procuravam explicar a existência de relação entre caracteres físicos e as características psicológicas ("...O Dra. Wells me disse que as morenas de bacia larga, como eu, devem tomar...").
O comportamento sexual dos habitantes da utopia de Huxley é completamente diverso do nosso. Eles tem vários parceiros e encaram isso com naturalidade. Além disso, consideram uma depravação ter um parceiro só ou cultuar a fidelidade. É óbvio que o narrador pretende chocar o leitor colocando em xeque seus próprios preconceitos sexuais. Há uma curiosa relação entre a sexualidade humana e a política. A estabilidade política social depende da instabilidade das relações afetivas e da permissividade sexual. A instabilidade política decorre da estabilidade familiar, da repressão sexual. Novamente parece que o autor endossa a teoria esposada por Freud no seu "O mal estar da civilização".
Há uma perfeita sintonia entre a teoria que informa a organização do Admirável Mundo Novo e a história da civilização ocidental. Veja-mos, por exemplo, o caso de Roma. Enquanto era uma República em que se proibia o casamento entre as pessoas das duas ordens sociais (entre patrícios e plebeus), em que o sexo era encarado com certo pudor, havia instabilidade e conflito permanente em Roma. Os conflitos precipitaram o fim da República e o surgimento do Império. Nesse novo período, a repressão política conviveu com a absoluta permissividade sexual. Não há, portanto, qualquer novidade no fato de Roma ter sido menos instável como Império do que o foi como República.
Bernard critica o programa de condicionamento, através do qual "Sessenta e duas mil e quatrocentas repetições fazem uma verdade." Goebels, Ministro da Propaganda do III Reich, empregava o mesmo método na Alemanha nazista e admitia publicamente que acreditava que a verdade era uma mentira repetida constantemente.
As mulheres do Admirável Mundo Novo usam cinto malthusiano. A semelhança entre este objeto e o cinto de castidade que as mulheres eram obrigadas a utilizar na Idade Média é apenas simbólica. Afinal, ao contrário de suas antepassadas elas estão livres para ter múltiplos parceiros. O que chama a atenção na verdade é a referência a Thomas Malthus, economista político inglês que defendeu a tese de que a produção de alimentos cresce aritmeticamente enquanto a população cresce geometricamente. Sua tese levou-o a concluir que as classes inferiores deveriam praticar o celibato a fim de evitar a fome. Extremamente religioso, Malthus acreditava que o sexo não devia ser encarado como uma fonte de prazer e criticava os costumes dissolutos de seus contemporâneos que acarretavam a explosão demográfica. É profundamente irônica a relação estabelecida entre Malthus e a permissividade sexual na utopia futurista de Huxley.
Os mortos do Admirável Mundo Novo são cremados em escala industrial. No capítulo 16 Mustafá Mond cogita a hipótese de mandar os dissidentes para a câmara de gás. No final da II Guerra, quando os Aliados libertaram Aushwitz e Treblinkla, foi revelado ao mundo o que os nazistas estavam fazendo com os judeus: envenenando-os em câmaras de gás e cremando-os aos milhares. Ao ler o livro ficamos com a impressão de que Aldous Huxley intuía o que estava por acontecer na Europa quando escreveu seu livro.
Entre os habitantes deste Novo Mundo são realizadas ritos muito semelhantes aos cultos dedicados o deus Baco (Dionisio entre os romanos). Os participantes se reúnem solenemente para tomar uma substância embriagante (vinho ou soma), cantam e dançam até entrarem em êxtase depois entregam-se freneticamente à cópula. Novamente a utopia de Huxley aproxima-se da história da civilização ocidental. Tanto que na reserva as personagens observam um ritual sincrético com elementos primitivos e cristãos que lembra um pouco aquele que é realizado civilização, com exceção do sexo grupal.
O desenvolvimento do romance depende fundamentalmente da dialética entre a civilização e a reserva indígena. Na confluência entre ambas encontra-se o protagonista. Filho de uma civilizada, John é educado mas não aceito como selvagem. Na civilização também não é tratado como civilizado. Acaba se transformando numa espécie de joguete, que Bernard usa para granjear reputação. Sua inadequação depende menos de sua origem do que da maneira como ele é encarado pelos demais:- civilizado para os selvagens e selvagem para os civilizados, John está desde logo sujeito ao isolamento.
Na civilização é consumido o soma, na reserva o Peyotl e a Mescalina. A utilização de drogas tem a mesma finalidade nas duas comunidades: manter a estabilidade social através da fuga. A princípio a única diferença é que o soma não traz efeitos colaterais indesejáveis como o Pyotl e a Mescalina. Todavia, no capítulo 11 ficamos sabendo que a utilização excessiva de soma acarreta parada respiratória (é assim que Linda morre). Não é difícil perceber que o autor sugere que a natureza humana é a mesma nos dois ambientes, que a diferença entre a civilização e a reserva é apenas aparente.
Como envelhecem e passam por dificuldades, os índios da reserva precisam de Deus. Em virtude de permanecerem jovens até o momento da morte, os civilizados não precisam Dele. Basta-lhes o culto ao Nosso Ford, que tem uma finalidade orgânica. A busca da juventude eterna sempre teve um caráter demoníaco. Por isso mesmo Fausto faz um pacto com Mephistófeles para rejuvenescer a fim de possuir Margarida. Daí podemos fazer uma clara associação entre o Admirável Mundo Novo e o Inferno de Dante, onde as coisas se repetem sempre e sempre indefinidamente.
E por falar em isolamento, deve-se ressaltar que a reserva é completamente isolada da civilização. É mantida numa espécie de Caixa de Skinner Gigante em que os membros das castas superiores da civilização fazem suas experiências. Alheios aos experimentos, os selvagens levam suas vidas como se nada estivesse acontecendo. Isso é possível porque rejeitam os valores civilizados. De certa maneira a reserva depende menos da civilização do que esta daquela. Mesmo presos os índios são independentes, enquanto a civilização precisa observá-los para aperfeiçoar-se. Daí porque a civilização realiza despesas com os selvagens quando poderia simplesmente exterminá-los.
Uma das maneiras mais eficientes que a civilização encontra para banir do cotidiano a animalidade de seus membros é o consumo excessivo de perfumes. Tanto que quando chegam à reserva a primeira coisa que chama a atenção de Lenina é o mal cheiro dos selvagens. Se pudesse sentir seu próprio cheiro depois de alguns dias sem banho e sem utilizar perfumes, certamente Lenina se surpreenderia quando selvagem também ela poderia ser. Nesse particular é óbvia a intenção do autor de colocar o leitor com sua própria realidade. Afinal, no ocidente a utilização de substâncias aromáticas é uma constante desde a antigüidade clássica.
Apesar do cheiro agradável, a civilização convive com a barbárie. Prova disso é o que acontece quando o selvagem impede a distribuição de soma. Descontrolados os operários passam a agredi-lo e são pacificados como se fossem animais.
A estrutura da obra apresenta vários níveis de complicação. O primeiro quando o selvagem chega à civilização. O segundo quando é apresentado ao D.I.C. acarretando sua humilhação. O terceiro quando Mustafá Mond resolve punir Bernard em razão de sua insolência. O quarto quando o selvagem recusa-se a sair do quarto e apresentar-se aos convidados de Bernard. O quinto quando morre Linda e o selvagem resolve interferir na ordem "natural" das coisas impedindo a distribuição de soma aos trabalhadores.
No cinema sensível o selvagem assiste a um filme que veicula preconceito racial. Um negro descontrolado rapta uma branca, abusa dela é preso e enviado para o recondicionamento. O negro representa o elemento primitivo que deve ser controlado. Mais que isto, simboliza a barbárie que o homem branco é incapaz de ver em si mesmo na medida em que segrega o outro. Através deste ícone, Huxley atinge em cheio um dos fundamentos da sociedade americana do início do século:- o regime de separação racial e a ausência de direitos civis dos negros.
No final do livro Bernard e Helholtz são removidos para ilhas. Em razão de suas próprias características geográficas elas lembram prisões:- um lugar do qual é impossível sair sem a ajuda de alguém ou de algo. Este símbolo, que bastaria por si só para dar ao leitor uma idéia da condenação das personagens, é reforçado pelo fato de que no início do século era comum a utilização de ilhas como prisões. Até mesmo o Brasil, que começou como uma grande colônia penal, teve sua Ilha Grande.
John resolve fugir. Os acontecimentos posteriores nos levam a ter a impressão de que sua derrota é completa. Seu esconderijo é descoberto. Darwin Bonaparte filma-o e se torna famoso em razão do sucesso do filme. Logo vêem os repórteres e os curiosos. A vida de John se torna um inferno. Lenina procura-o com outros jovens de castas superiores. Depois de agredi-la, participa de um ritual dionisíaco com os civilizados e suicida-se. Antes porém, para evitar a tentação de uma outra mulher havia se jogado num arbusto espinhoso dilacerando seu corpo exatamente como São Benedito (486 a543 dc) o fez durante seu retiro.
A morte foi a única forma que John encontrou para afirmar sua liberdade e individualidade diante do mundo. É verdade que ele perde a vida, mas também é verdade que encontra a dignidade recusando-se a participar de uma sociedade massificada em que nem mesmo seu desejo de isolar-se é respeitado.
domingo, 7 de dezembro de 2008
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